Nem bebendo rabo de galo dá para ficar tão tonto quanto tentando acompanhar as pedaladas regimentais de Arthur Lira (PP-AL).
A volta dos que não foram. Hoje é dia de explicar como, enfim, a Câmara vai colocar na Constituição mais uma vez, por votação apertada, que o governo pode, sim, dar calote. PEC do Calote é como Velozes e Furiosos: já era ruim na primeira vez, mas tem tantas continuações que vai ganhando um quê de referência cult e em pouco tempo não haverá mais ninguém que não tenha defendido alguma delas.
Mas, antes de mais nada, vamos apresentar o Dominic Toretto das Alagoas.
Tradição. Arthur Lira sempre foi um prodígio. O tino para a política foi percebido bem cedo, quando foi nomeado assessor especial na Assembleia Legislativa de Alagoas apenas aos 15 anos. Que o pai fosse deputado estadual é detalhe. Biu de Lira, o nome-fantasia simpático do pai Benedito, tem carreira tão prolífica quanto o Excel de distribuição de emendas parlamentares do filho. Foi vereador de Junqueiro, vereador de Maceió, presidente da Câmara e prefeito interino em 77. Foi deputado estadual, presidente da Assembleia e governador interino em 83 e 93. Foi deputado federal e se elegeu senador com mais votos que o todo-poderoso Renan Calheiros (e tirando a vaga da ex-presidenciável Heloísa Helena). Quando todo mundo achou que o Biu tivesse se aposentado, ele transferiu o título para a casa de praia e, em meio à pandemia, pegando até o filho de surpresa, se elegeu prefeito da paradisíaca Barra de São Miguel, cidade de 8 mil habitantes a 20 km de Maceió, passando a Praia do Francês. Não bastasse a aventura praiana, Biu está sendo cogitado para a eleição indireta a governador interino ano que vem, beirando os 80 anos, quando o governador Renan Filho pode renunciar para concorrer ao Senado. O estado hoje não tem vice, que renunciou para ser prefeito de Arapiraca.
Fora da curva. Mas o assunto de hoje não é Biu: é o pequeno Arthur, assessor especial antes dos 20, vereador e deputado estadual antes dos 30, que de fome de emenda parlamentar não morre um pouco por dia. Há uma lenda de que ninguém conhecia regimento interno como Eduardo Cunha. Mas Cunha tinha um indicado como presidente da Comissão de Constituição e Justiça que um dia engoliria o líder. Ele mesmo, Arthur era a Bia Kicis do Cunha. Na CCJ, em defesa do reinventor do Centrão, Lira mostrou toda sua inventividade regimental: quando ameaçaram Cunha de cassação, ele sugeriu que se votasse um projeto de resolução em vez do parecer pela cassação do príncipe suíço. A ideia era criar uma pena mais leve e salvar o chefe. Lira entrou para a história da Câmara como integrante da tropa de choque de Cunha.
Ahab do Paranoá. Mas o brilho de Arthur era muito maior que o do coturno de qualquer PM do choque. Candidato a suceder Rodrigo Maia, Lira, o antigo aliado do flamenguista Cunha, foi preterido pelo torcedor do Botafogo. Mas esmagou o gordinho em exercício e, ao contrário do protagonista de Moby Dick, trucidou Baleia (o Rossi) na disputa pela presidência da Câmara. O novo presidente herdou 57 pedidos de impeachment, uma reforma tributária, uma reforma administrativa, um projeto de lei orçamentária dois meses e meio atrasado, uma pandemia com então 227 mil mortos e a simpatia pessoal do presidente da República.
Recorde. Lira só levou 15 minutos para dar seu primeiro drible. Sua primeira decisão foi anular a votação para os demais cargos da mesa diretora e destituir o bloco que apoiava seu adversário. Nove meses é o tempo necessário para que aquela brevíssima irresponsabilidade de Carnaval dê lugar ao sonho de ser papai. Parte da esquerda dormiu com Bolsonaro em fevereiro e olha só o cara do menino Lira:
destituiu a comissão da reforma tributária logo depois da entrega do relatório,
alterou o regimento da Câmara para dificultar obstruções,
pautou no plenário projetos rejeitados em comissão,
colocou para votar propostas cujo texto ainda não tinha sido apresentado,
passou a dispor de R$ 11 bilhões em emendas parlamentares do orçamento secreto, sem discriminar qual deputado foi responsável por qual benesse do governo federal.
Arrojado. Ontem, o John Deere do Planalto, o trator de Maceió, inovou de novo: durante a sessão, permitiu que deputados em viagem de missão votassem remotamente e inventou uma emenda aglutinativa de PEC (ou seja, que junta várias emendas para substituir o texto principal) sem que nenhuma emenda tivesse sido apresentada à proposta. Uma mistura de procrastinação e competência do Planalto exigiu de Lira mais saídas heterodoxas: incluiu a emenda direto no plenário, sendo que emendas devem ser apresentadas na comissão especial. E também começou a votar antes da apresentação do texto. Não que isso seja muito importante: a gente sabe que os deputados só leem mesmo o próprio nome e o valor atribuído na planilha das RP9.
Maria Fumaça. Lira se tornou Thomas, o Trem de Resgate do governo Bolsonaro. No trolley problem dos precatórios, entre cancelar o Auxílio Brasil e destruir qualquer hipótese de responsabilidade fiscal, a Locomolira escolheu o caminho com mais normas regimentais para atropelar.
Não tem cão, caça com gato. Para chegar aos 308 votos necessários para o almejado calote, só faltou Lira laçar alguma capivara no Paranoá para votar por algum aliado. É bem capaz que até a capivara tenha recebido uma emenda para comprar um trator e preparar um terreno melhor para si no Lago Norte. A capivara podia aproveitar e requerer vaga na CCJ, comissão que até tem cabeça, mas ainda não há prova flagrante de que nela haja massa encefálica.
Fecha a conta e passa a régua, 312 votos: mais uma vitória do Fast and Furious do plenário tirando uma fina no quórum de PEC.
Ciro Gone. Hoje pela manhã, a eterna terceira via, o homem de Harvár, em sua infindável capacidade de ser surpreendido pelo esperado, descobriu que seu partido aprovou um calote. Encarnou a imitação de André Marinho e disse: pera lá, assim eu não serei candidato, francamente…
Revolução. A semana fez mais pela agenda fiscal dentro do PDT que 40 anos de brizolismo: há alguns dias, o partido abandonou Bresser e o câmbio de equilíbrio para prometer dólar barato1. Agora, o candidato que dizia que ia tirar o nome das pessoas do SPC resolveu que não pode ser candidato por um partido que apoia calote.
Nacional-contracionista. Os editores deste Rabo de Galo não acreditam que ele mantenha a palavra até 2022, para a felicidade dos seus fiéis 10% e a tristeza dos arquitetos da terceira via. Para quem se chama de Ciro Games, fica feio não descer pro play. Mas, se continuar assim, mais uns três meses e Ciro convida Gustavo Franco para fazer seu programa econômico.
Lua de mel. Depois de muito namoro e as inevitáveis piscadelas e elogios em voz aveludada de Álvaro Dias, o ex-futuro-ministro do STF Sergio Moro resolveu fechar com o Podemos, o homônimo reaça da agremiação socialista espanhola, e se candidatar à Presidência. A decisão demorou mais que o prazo de sua credibilidade, e não saiu antes de mais uma invasão ao Telegram do ex-super-juiz.
Autobahn eleitoral. Hype man de Moro e de olho na reeleição no Senado, Álvaro Dias ficou animado. Não se pode dizer o mesmo do eleitorado, mas ainda mais decepcionadas estão as vias de número 3 a 87. O grupo das terceiras vias é como coração de mãe: sempre cabe mais um. O único requisito é não ter voto. Doria deve ser o filho favorito. O Márcio Cuba já ensinou que o governador tem a fórmula para unir o Brasil: todo mundo não gosta dele.
Justiça. O conje da Rô (in Rô we trust) até tem meia dúzia de votos, mas tem menos agenda que o PSD, que não é nem de esquerda, nem de direita, muito pelo contrário. Sua única bandeira é criminalizar o crime — mas só os cometidos pelos vagabundos; PM é cidadão-de-bem, então pode matar à vontade. Pelo menos não se comprometeu a mudar tudo-isso-daí — o Bolsonaro mexeu no Bolsa Família e deu ruim.
Camisa-negra. Todo mundo sabe que Moro adora uma referência italiana, embora invariavelmente peque no costume e nas camisas escuras e gravatas pretas. Mas na imagem de divulgação do ato de filiação, o ex-juiz mirou na Mani Pulite e acertou em Mussolini sensualizando de perfil. É importante ter um ídolo.
Estamos ansiosos por mais uma campanha incidentalmente defendendo Deus, pátria, família e extirpar os nossos inimigos, tudo com a bênção do cidadão-de-bem.
O mito cria, o lixo copia. Os hermanos resolveram se inspirar na Pátria Amada. Martín Guzmán, o Guido Mantega argentino, andou falando muito com o Chico Lopes e resolveu congelar preços para segurar a inflação. Fernández, por sua vez, ficou com inveja do dono do Maranhão e quis ter fiscais de preços para chamar de seus.
Como é bom ter presidente.
PS. Dizia Kuznets, aquele economista que formalizou o chavão do bolo crescer antes de dividir, que há quatro tipos de países: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina. Sabemos por que os desenvolvidos crescem e os subdesenvolvidos não; o difícil mesmo é entender a marcha a ré engatada lá no Rio da Prata.
PS nº 2. Certamente não é por terem sido peronistas demais, mas porque não foram peronistas o bastante!
O PDT apagou do Twitter, mas sabemos que uma vez na Internet, sempre na Internet. https://imgur.com/a/jRPg0AL.